Pobres pedestres

Qual é o problema com os pedestres no Brasil?

Essa é uma velhíssima questão da segurança no trânsito. Constroem-se passarelas e as pessoas insistem em passar por debaixo; pintam-se faixas de segurança e quase todos ignoram; instalam-se semáforos para eles e… será que ninguém aprendeu a diferença entre verde e vermelho?
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O comportamento indisciplinado e imprevisível do pedestre desorganiza a lógica do sistema viário, finamente elaborada por modelos da engenharia de tráfego ao longo de décadas. Os veículos motorizados ocupam sempre (ou quase) o espaço delimitado a eles destinado – a rua – preferencialmente cada qual ocupando uma posição na faixa de circulação. Praticamente toda sinalização viária existente foi  desenvolvida para ordenar essa circulação. Esse espaço dos veículos não pertence ao pedestre, que devem seguir isolados em seu próprio espaço – a calçada, e apenas eventualmente pisar o asfalto para uma travessia. Como dois corpos ainda não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo, o carro passa e o pedestre espera sua vez, ou o pedestre passa e o carro espera. É tudo assim, bem simples.

Coube à educação para o trânsito por muito tempo (ainda hoje?) a tarefa infeliz de adestrar o pedestre para a convivência com o carro, símbolo máximo da urbanização e do progresso das cidades. Se preparássemos o pedestre para se tornar um futuro motorista, quem sabe ele compreendesse melhor o risco que corre a cada travessia – na pele do motorista, ele aprenderia que não é moleza dirigir um carro e, ao mesmo tempo, driblar a irresponsabilidade dos pedestres. Para isso, inventaram aquele simulacro, a mini-cidade, que toda criança adora, obviamente, e que consiste num rápido e divertido ensaio dos muitos papéis do sujeito no trânsito – a criança é pedestre, depois veste a fantasia de um carro, depois de um ônibus e assim por diante. Sempre achei a idéia imbecil e o fato inegável é que continuaram morrendo pedestres em todo país, inclusive crianças, representando metade ou mais de todos os mortos no trânsito anualmente.

É uma vergonha que morram tantos pedestres porque isso denuncia a injustiça de nossas cidades. Os gestores públicos deveriam meter a cabeça em um buraco, mas como isso não convém, vão se reproduzindo os argumentos de que é tudo uma questão cultural de longas raízes históricas e que, afinal, há pouco a se fazer diante do impulso quase suicida dos pedestres. Valeria investigar, porém,  o tempo e o espaço reservado a eles nas grandes cidades. Foi exatamente o que fez o repórter James Cimino, da Folha de São Paulo. Ele saiu às ruas de São Paulo para cronometrar o tempo do semáforo para pedestres nos principais cruzamentos e avenidas mais movimentadas e o resultado está na matéria “Pedestre tem 15 segundos para cruzar via”, publicada no dia 23 de maio, no caderno Cotidiano.

O que provaram os ponteiros do relógio? Em todos os cruzamentos observados, o tempo é insuficiente para atravessar a rua CA-MI-NHAN-DO e, às vezes, nem correndo. Agora, vamos lembrar qual é a imagem que se ilumina de verde quando o sinal abre para o pedestre? A imagem é de um boneco com as pernas abertas, o braço adiante, como se caminhasse, passo a passo, para chegar ao outro lado da rua. Para que ninguém tenha dúvida, lê-se o comando WALK (caminhe) nos focos para pedestre norte-americanos, provavelmente porque a travessia do pedestre mereça a máxima prioridade no uso da via, certamente porque é mais seguro andar do que correr.

Ninguém repara no bonequinho verde, no entanto. Os olhares estão sempre aguardando outro sinal: o vermelho para os carros. Dá tempo de chegar ao outro lado? Será que vai já vai abrir? E se o motorista avançar antes? Não dá para confiar em bonequinho verde.

A vida de pedestre em São Paulo é esse humilhante cotidiano de se curvar sempre à prioridade da fluidez dos veículos. O pedestre é um estorvo nos cálculos da engenharia de tráfego. Melhor seria que ele não existisse, mas já que está em toda parte, quanto tempo é possível destinar à sua travessia? O tempo necessário para que ele percorra

1,2 metro por segundo

Essa é a velocidade esperada de um pedestre normal para que sua travessia não comprometa o desempenho do sistema viário. A CET, órgão gestor do trânsito paulistano, prontificou-se a explicar que é uma velocidade “mais do que suficiente”, citando orgulhosamente estudos espanhóis que comprovam que pessoas com mais de 55 anos de idade caminham a uma velocidade média de 1,5 m/s e que até as mulheres em Nova Iorque andam a 1,29 m/s. Conclui-se que exigir uma velocidade 1,2 m/s dos paulistanos não é nada demais e chega de chorumelas.

Não se trata, porém, de uma caminhada para uma parte expressiva da população paulistana. Muita gente terá que apressar o passo e, quem puder, terá mesmo que correr. Não é para qualquer um: mais de 600 acabam mortos no meio da travessia todos os anos em São Paulo. Surpreende que aproximadamente 30% dessas vítimas tenham mais de 60 anos de idade?

A morte de tantos idosos indica o desajuste da velocidade de 1,2 m/s ao rápido envelhecimento da população brasileira. Não faria mal aos engenheiros prestarem atenção aos principais dados do IBGE. A velocidade de 1,2 m/s não é, entretanto, uma medida humana; ela não decorre da performance de pessoas reais; ela não tem nada a ver com a “média” dos habitantes de São Paulo. Ela ignora, sobretudo, que a travessia da rua é apenas um pedaço da viagem do pedestre. Antes e depois é preciso enfrentar as calçadas da cidade.

As calçadas de São Paulo expressam nossa incivilidade. Ao pedestre, um resto de espaço, uma migalha do sistema viário. As calçadas são estreitas demais, irregulares, íngremes, cobertas por qualquer tipo de pavimento. Tudo deveria seguir um padrão construtivo, mas parece seguir apenas o desprezo de cada proprietário pelo espaço público. O resultado é um pista de obstáculos absurdos que exige mais do que um bom preparo físico, porque à miséria da calçada ainda precisamos somar a o desvio de postes, o salto sobre buracos e os montes de lixo. Nunca olhe para o alto, quando caminhar em São Paulo! Quando finalmente se chega à beira da calçada, falta fôlego e paciência de atravessar a pista a 1,2 m/s.

Resta do lado, ainda bem, o asfalto da pista… muito mais limpo e plano. Em muitas situações, sair da calçada e invadir o asfalto é comportamento bem inteligente, ao contrário do julgamento unânime de que é coisa de louco, de suicida. O pedestre no asfalto desordena o trânsito porque, antes, a cidade o expulsou para o asfalto – bem ali onde morrerá quase metade das vítimas do trânsito da cidade.

Falta espaço, há pouco tempo – pobres pedestres!

© Eduardo Biavati e biavati.wordpress.com, 2008/2016.

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Publicado por

biavati

Sociólogo, escritor, palestrante e consultor em segurança no trânsito, promoção de saúde e juventude.

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